“Me prometeram que me tornaria pai em três momentos: quando minha filha chorasse ao nascer, quando eu cortasse o cordão umbilical e quando eu a carregasse no colo. Minha filha nasceu mole e azul. Ela não chorou. O cordão foi cortado às pressas pela equipe médica e quando eu peguei minha filha no colo, ela estava morta.

Joana nasceu em dezembro de 2017 com parada cardíaca e viveu por seis dias no CTI, ligada a 11 aparelhos. Eu sou grato por esses seis dias com ela. Quando a peguei no colo, já sem vida, e olhei para ela, foi o momento mais catártico da minha vida.

É difícil explicar. Eu olhei para ela e tinha tristeza e sofrimento, claro. Mas eu podia sentir um certo sorriso no meu rosto enquanto chorava. Então, por cinco minutos, eu disse sem parar oh, filha. oh, filha. oh, filha. Minha esposa, Noemi, estava atrás de mim.

Quando me dei conta, todos tinham saído da sala. Estávamos só nós e uma enfermeira que me olhou sorrindo e disse “ela é muito linda”. Aquilo foi de um acolhimento. Fizemos o velório com caixão fechado e, na época, eu quis acelerar tudo. Talvez fizesse diferente hoje.

Engravidamos da Joana em 2017 e toda a gestação foi tranquila. Sem qualquer intercorrência. No dia 26 de dezembro, por volta das 22h, 23h, minha esposa entrou em trabalho de parto. Tínhamos nos preparado para o parto natural.

Chegamos ao hospital e depois de algumas horas, o batimento da bebê começou a ficar irregular. A médica optou por não dizer nada, mas eu conseguia sentir, pelo olhar dela, que algo estava errado.

A Noemi estava em estado de transe, parindo nossa filha. Eu via tudo que acontecia. Fiz leitura labial e vi quando a médica disse “pede para chamar”. Nesse momento, de cinco pessoas que estavam no quarto, passamos para 25.

Eu tinha me preparado, estudado, pesquisado. Queria garantir que minha esposa não sofresse nenhuma violência obstétrica. Mas, de repente, quando vi, tudo tinha saído do controle.

Era tudo um desespero. Vi a anestesista fazendo a manobra de kristeller, porque ela tinha que sair logo. A Joana saiu depois de 30 segundos, mole, azul. Nunca tinha visto isso. Ela foi direto para o pronto atendimento e eu não conseguia mais vê-la. Só via um monte de médico tentando estabilizá-la.

Ficamos internados no hospital os seis dias da vida da Joana. As pessoas iam nos visitar e minha função era como a de porteiro. Ficava na porta do quarto, recebendo as pessoas que chegavam perguntando sobre a Noemi. Me diziam para ser forte, para cuidar da minha esposa. Eu era uma pedra. As pessoas entravam perguntando pela Noemi e saiam perguntando de mim. Foi então, quando eu parei para responder, que eu percebi que eu não estava bem. Percebi que eu tinha vontade de chorar, de falar, de ser abraçado.

E a primeira pessoa que me validou como pai, me tornou visível ali, foi minha esposa. Ela dizia para as visitas “olhem pelo Daniel, perguntem como ele está também. Ele é o pai da Joana”.E minha luta, desde então, foi para ter esse reconhecimento da paternidade, que, de acordo com a sociedade, eu não vivi, pois não passei por aqueles três momentos que me tornariam pai.

No enterro da Joana, minha fala foi para afirmar a existência dela. Ela não vive, mas ela existe. Eu me fiz pai na morte da minha filha e o luto é uma dimensão da minha paternidade. Mas eu já era pai quando colocava Alive, do Pearl Jam, para ela ouvir na barriga.

Eu precisei entrar em contato com a minha dor. Minha esposa me mostrou o quanto era importante sentir. Fui cavando espaço. Percebi que minha raiva da perda poderia ser direcionada e comecei a me ver, olhar para mim como alguém que sofria.

Buscamos um grupo de acolhimento de casais e, entre muitas mulheres, somente eu e mais um homem. Eu pensei, cadê os pais desses bebês neonatais que partiram?

@lutodohomem é o primeiro e único projeto de acolhimento ao luto masculino no país. Ele faz parte do @elisabethkublerrossbrasil. Eu digo que o primeiro e único grupo criado para o luto do homem foi fundado por uma mulher, pela Joana. Ela é quem criou. Eu só administro. A passagem dela por aqui aconteceu para transformar.”

por Daniel Carvalho Pereira 🙏🏻
@dacarpe

 

Sobre o projeto Escritas de Passagem (@escritasdepassagem)

MANIFESTO:

Ser palavra para o que não há nome.
Ser texto para o que foge do tempo.
Ser escrita para histórias que precisam ser ditas.
Pois é preciso falar sobre morte em vida.
É preciso dar vida ao vazio do luto
É preciso olhar para o canto que fica em silêncio
E deixar que ele seja ouvido no momento que quiser dizer.
O Escritas de Passagem é esse ouvir e contar
De vidas que ficaram e de vidas que foram
De ausências, de vazios e de recomeços
O Escritas de Passagem é esse instante no texto
Que pode ser compartilhado, abraçado
E diluído em outros instantes comuns.
As histórias de morte para falar da vida, das vidas.

texto por @manas.escritas

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