Ligo a TV depois do café da manhã. Começa o Encontro com a Fátima Bernardes na Globo. Começo a responder as mensagens acumuladas e a pensar nos compromissos do dia. A atenção é dividida entre o som do programa e o meu celular. De repente vejo a atriz Mariana Rios aparecer. Eu tinha visto uns dias atrás que ela havia falado publicamente em rede social sobre a perda gestacional que ela teve. Minha atenção imediatamente larga o celular e se fixa na tela da TV.

Me chamo Daniel, sou um pai enlutado pela perda de minha filha Joana aos 6 dias de vida, após uma complicação no parto. Estive em um lugar que Mariana Rios me convocou a estar de novo: o da perda de um bebê durante a gestação ou logo após o parto. Esta perda tem nome: chama-se perda gestacional e neonatal e atinge muitas pessoas no país e no mundo. Eu também amei e também perdi minha filha. E nesta trajetória tive que lidar com muitas questões, que falo mais abaixo, mas que ajudaram a criar o primeiro projeto de acolhimento a homens enlutados no Brasil: o Luto do Homem. É um projeto de acolhimento, de entendimento, de pesquisa e de visibilidade do luto masculino no Brasil que ao longo de 2 anos já acolheu centenas de homens em luto que de outra forma não encontraram espaços para lidar com seus lutos e serem neles acolhidos. Assistir o programa hoje me tocou em um monte de questões quando vi sendo abordado a perda que a Mariana trouxe. A mim e a tantos outros homens que passaram e passam por isto. É na figura de alguém que toca um projeto com estes homens como Aconselhador no Luto e como um pai enlutado que viveu uma situação similar, em nome destes homens e destes pais, que falo através desta carta.

O luto pela perda gestacional e neonatal é um luto invisível na maioria dos casos: ou porque ninguém quer lidar com um tabu desse tamanho ou porque lidam, mas se esforçam pra lidar o mais rápido possível. Mariana se dispôs a falar pra todo mundo e então o assunto viralizou. Não é estranho a reação da sociedade: num campo onde este tema é tão invisibilizado; quando o assunto é abordado de forma aberta e sincera as pessoas abraçam e acolhem esta mãe que agora se vê enfrentando um processo de luto. Mas isto não é tão simples. Por muitas vezes esta mãe é cobrada em várias coisas: a seguir em frente, no tempo em que seu sofrimento se expressa, a tentar novamente preencher aquele vazio que a ausência do esperado filho deixou… Mariana Rios e o programa Encontro tiveram a coragem de levar este tema para a frente do debate dando visibilidade a uma maternidade invisível e por vezes até deslegitimada, jogando luz sobre uma experiência muito mais comum do que se imagina. Um momento fundamental de acolhimento à dor de muitas mães enlutadas.

Mas o espaço tão aberto e acolhedor ao luto materno não se atentou a uma outra figura que estava ali: o pai. É verdade que o programa mencionou o companheiro de Mariana, através da pergunta de André Curvello, e que a discussão aconteceu. Mas o espaço em que esta parte tão importante da história foi acolhido e discutido foi através da voz e do olhar de 3 mulheres. É claro que se faz importante que mulheres também discutam e falem sobre o luto deste pai e que sempre é salutar e benéfico levar este olhar, mas também é importante de sinalizar que o espaço para o luto paterno na perda gestacional e neonatal é extremamente invisível a este homem. E isto diz muito sobre como construímos as masculinidades em nossa sociedade.

O homem cresce sem chorar, sem ser muito incentivado a entrar em contato com suas emoções e sentimentos. Por outro lado, também aprende ao longo da vida que ser homem é ser forte, viril, provedor. Acumula lutos ao longo da vida, silenciados pela força de ser homem, pela negação da fragilidade. Homens, de forma generalizada, crescem sem repertório ou “alfabetização” emocional. Em uma crise profunda, onde este homem é confrontado com uma dor absolutamente aguda, uma resposta comum é “Vida que segue”. E segue o homem, no trabalho, no lazer, na vida. “Não sei” é uma resposta que escuto muito quando pergunto a homens enlutados como eles estão se sentindo. Eu acho isso mais forte do que se respondessem “Nada”. Porque fala de uma inabilidade, de algo que, para muitos, nunca puderam entrar em contato ao longo de toda a sua vida. Acabam preferindo o silêncio. Ou a reclusão escondida, um choro recôndito, à parte de tudo e todos: num banho sozinho, com chuveiro ligado pra ninguém ouvir; ou num carro, com os vidros fechados, em um estacionamento de um supermercado qualquer, onde ninguém irá vê-lo. O silêncio do homem enlutado é, na verdade, um grande grito de dor. De uma dor que não sabe falar o idioma que as pessoas falam, mas que fala uma língua própria, que teve que desenvolver ao longo de anos sendo homem numa sociedade patriarcal.

Não precisamos de homens que falem a nossa língua. Precisamos aprender e educar nossos ouvidos a entender o idioma de seus sofrimentos. Precisamos ouvir o silêncio. Somos criados a ficar extremamente desconfortáveis com o silêncio do outro. Mas ele fala e muito. Se escutássemos esse silêncio de forma compassiva, escutaríamos a dor masculina de um pai que também amou aquele filho por todo o tempo em que ele esteve no corpo de uma mulher; escutaríamos as projeções e as expectativas que foram criadas, escutaríamos as preocupações com o quarto, com a presença ao lado da mãe, com as questões financeiras da família, escutaríamos os desconfortos em conversar com a barriga, ou as belas músicas que ele pensou para um pequeno concerto abdominal antes de ir dormir… O que é complicado não é o silêncio do homem, mas o ouvido de quem não o consegue ouvir.

Lucas, o companheiro de Mariana, foi mencionado por três mulheres de forma muito acolhedora e amorosa, lembrando que ele também havia perdido, que a perda era do casal. Mas não ouvimos Lucas. Não ouvimos nem o seu silêncio. A voz da mulher, quando se abre espaço para esta perda, é mais legitimada. O homem não é visto, regra geral, como alguém que perdeu. A sociedade ainda tem a ideia de que esta paternidade nasce junto com o parto do filho. Ora, se o filho não chegou a nascer, então logo não há um pai. Filho de mãe, mas com um pai que não é. Aí é que reside a invisibilidade paterna na perda gestacional e neonatal. Não há perda porque não há pai. Sem espaço, como esperar que este homem fale? Este homem se coloca, portanto, no lugar de quem tem que ser forte por quem perdeu. É seu dever ser forte, viril, provedor. E seu entorno também reforça este lugar: “Como ela está?” e “Você precisa ser forte por ela” são frases comuns a estes pais enlutados. Uma paternidade negada, que ele mesmo aprende a negar pra si.

Eu mesmo me senti de novo nesse lugar. Enquanto Joana estava no CTI, minha esposa estava no quarto do hospital, se recuperando fisicamente do processo complicado que foi o parto. Eu ficava na porta, controlando quem entrava e quem saia, revestido do papel que achava que era meu: cuidar dela e ser forte. As pessoas chegavam para nos visitar e quase todas perguntavam por ela. Me diziam que eu devia ser forte por ela. Que devia ser complicado e doloroso para ela. Me perguntavam se eu precisava de alguma coisa somente quando era para ela. Eu e minha dor não importávamos, tanto que nem eu a enxergava e a ouvia. Eu dizia pras pessoas com uma absoluta sinceridade ingênua que estava bem. Eu não estava. Ninguém via isso, nem eu, tamanha é a invisibilidade sobre este pai. Foi neste lugar que ver o programa me remeteu de novo. Não ter um homem falando de sua perda, ter um programa onde só a voz feminina foi ouvida provavelmente remeteu milhares de pais que passaram pela perda também a este lugar de isolamento e de invisibilidade. Precisamos do mesmo espaço cedido para as mulheres falarem de suas perdas para que homens possam mostrar seus sofrimentos e seus amores no luto da forma como eles são.

Não é todo homem que irá falar deste lugar. São muito poucos, aliás. Mas eles existem. E é importante que eles falem, que eles estejam neste lugar para que outros homens enlutados possam entender que há espaço para si mesmo no luto. Mesmo que este homem fale o silêncio. É importante que o sofrimento do homem enlutado seja visibilizado. Mesmo que o esforço do programa seja muito amoroso e benéfico, é preciso estar atento ao espaço que se cria. Porque quando o programa fala do luto do homem através da voz das mulheres, sem querer e com a melhor das intenções, ele reforça um espaço onde o homem não enxerga pertencimento. Isto cria uma reafirmação do silêncio como única via de enfrentamento do luto.

Porque há muitas singularidades no luto quando olhamos não só para os atravessamentos sociais que incidem sobre ele (gênero, raça, classe, idade, territorialidade, sexualidade etc.) mas também na individualidade. Almir Sater e Renato Teixeira definem isso da melhor forma: “Cada ser em si carrega o dom de ser capaz e ser feliz”. Eu tive meu luto invisibilizado e meu sofrimento negligenciado (por vezes por mim mesmo) e meu silêncio se fez voz quando eu parei para ouví-lo. Hoje minha voz se faz ouvida, através do projeto, pela voz e pelo silêncio de centenas de homens que o projeto vem acolhendo. São estas vozes, silenciosas ou barulhentas, que precisam de espaço, especialmente na perda gestacional e neonatal.

Neste sentido, nós do Luto do Homem, queremos agradecer ao programa pelo espaço aberto para este tema e a Mariana Rios por ter tido a coragem de falar abertamente sobre um assunto tão necessário, mas ao mesmo tempo oportunizar para a necessidade de não somente olhar o homem, mas chamá-lo a falar. Para que ele fale o que ele sente, do jeito que vier, mesmo que através do silêncio. Que possamos ter a oportunidade de ouvir os silêncios e as falas destes homens, de frente, por suas próprias vozes, para que cada vez mais homens aprendam a falar este idioma. É um idioma que fala sobre dor, mas que se dado espaço pode cantar muito amor. Na experiência com vários homens enlutados o que temos visto é isto: o sofrimento masculino vem recheado de amor também. Porque o amor não morre. Mas ele precisa saber ter espaço para se expressar. E podemos aprender melhor isto vendo o espaço de outros. Queremos poder falar sobre isto e romper definitivamente com a ideia de que homem não sofre ou não fala sobre seu sofrimento. Queremos poder mostrar que este sofrimento não vai sozinho, vai com muito mais coisa. Queremos poder falar para vários homens enlutados, pais que perderam filhos/as, filhos que perderam pais ou mães, homens que não enxergam nenhum espaço para seu sofrimento e dizer para eles e para a sociedade toda que este espaço existe e está dentro deles, antes de qualquer coisa. Queremos levar a experiência tão bem sucedida deste projeto, que é supervisionado pela Fundação Elisabeth Kübler Ross, uma fundação internacional que toca projetos no mundo inteiro sobre a morte, o morrer, o luto e sobre tanatologia, enfim, queremos levar este projeto para que as pessoas entendam um pouco melhor sobre o luto masculino, suas singularidades, e que possam aprender a ouvir a voz ou o silêncio deste homem em luto. Queremos, acima de tudo, dizer para o Lucas: você é e sempre será pai. Porque sua paternidade não tem fim. Ela se funda no amor que você tem e sempre terá por seu filho. E o amor, ao contrário de todo o resto, não morre.

Para toda a equipe do programa, nosso obrigado pela coragem de abrir o tema e nosso desejo de que se abram mais espaços onde o homem enlutado também possa falar. Para Mariana e Lucas, nosso abraço mais acolhedor possível, no desejo de que o amor vivido no curto tempo não seja impedido pela dor e pelo sofrimento da perda. Especialmente ao Lucas, nossa disponibilidade e nosso carinho, na esperança de que sua voz ou seu silêncio possam ecoar dentro de você para depois, quem sabe, ganhar o mundo na forma do amor incondicional.

Com carinho
Daniel Carvalho
Pai da Joana, Coord. do projeto Luto do Homem

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