Pouca gente sabe tão bem o significado da expressão “ferida aberta” quanto um pai enlutado. Pai aqui fazendo a flexão de gênero, especificando o ser masculino. A perda de um filho sempre será uma ferida aberta. Para pais, mães, avós, tios, enfim, para todo mundo que desejava aquela criança. Mas há uma especificidade no lugar do luto paterno, no lugar da perda. O pai é aquele que perde, mas que ninguém vê na perda. A idealização da maternidade afeta mulheres em várias dimensões, inclusive no luto: espera-se da mãe a dor descomunal, gigantesca, uma dor que reforce a idealização do amor de mãe que socialmente se constrói o tempo todo. Dor e amor trabalhando juntos para edificar um lugar que muitas vezes obriga mulheres a cumprir um papel com o qual não se identificam. Amar e sofrer são coisas singulares, como toda a experiência humana. A perda de um filho quase sempre é utilizada socialmente como ferramenta para reafirmação desses lugares. “Não há dor maior do que uma mãe perder um filho”, como se dores fossem ranqueáveis…
Seria possível dizer a mesma coisa sem precisar estabelecer pódios de dor, sem idealizar através da flexão de gênero a figura materna e sem precisar dosar o tamanho do sofrimento. A gente pode olhar para o luto paterno, para qualquer sofrimento, sem esses olhos condenatórios (sim, é uma condenação) de quem espera uma quantidade de dor para poder legitimá-la no outro. É possível enxergar a dor do outro sendo a dor do outro. Uma dor não vista na sua singularidade é e sempre será uma ferida aberta. O dono da dor pode colocar qualquer curativo, mas ela sempre estará escancarada.
Eu dizia antes que um pai enlutado sabe muito bem o que é uma ferida aberta porque é ele que encara essa dor todos os dias. É uma dor solitária, em um banho demorado, com a torneira ligada pra ninguém ouvir o choro; é alguns minutos no estacionamento de um supermercado, dentro do carro, com o vidro fechado, em um grito contido; é a raiva, sempre ela, que se joga na frente de qualquer tentativa de aproximação com a dor. O homem pai que passou pela terrível experiência de perder um filho vai sempre, no fim do dia, encarar sua dor, quando a sociedade cria e faz esforços gigantescos para não legitimá-la. A gente precisa ser forte, a gente precisa prover, a gente precisa estar bem para quem perdeu, aos olhos do mundo: a mãe. O amor de mãe seria insuperável.
E é isso mesmo: todo amor é insuperável. Todo amor é o maior do mundo. O que pais, em especial no luto paterno, precisam saber é isto: todo amor é o maior do mundo. E nenhum amor compete. O que é esta dor da perda senão um imenso amor por quem se foi? Pais enlutados também sofrem porque também amam. Para nós, é muitas vezes neste sofrimento solitário que descobrimos nossa paternidade: eu sofro porque eu amo meu filho ou minha filha como nunca amei ninguém. E este amor não precisa acabar. Aliás, tenho pra mim que ele não acaba, mesmo que queiramos.
A ferida aberta é só a constatação de que o amor de pai existe. O mundo pede para tapar, para esconder. “Não me mostre sua ferida, eu não quero vê-la“. Ninguém quer ver um pai em seu luto. O mundo nos renega a um lugar de invisibilização, de quem não existe. Mas um pai que descobre o amor para além da vida se orgulha de sua ferida. Ele mostra o sangue, a pele rasgada, ele grita a sua dor, mesmo que através do silêncio. Porque este pai descobriu sua paternidade, seu amor que não morre, um amor que vence a barreira da existência física. Um pai enlutado faz todos o verem, mesmo que queiram virar os olhos. Um pai enlutado luta por sua paternidade, porque sabe que é nesta dor que reside seu amor.
É um amor de resistência, que se nega a morrer, porque é impossível mesmo disso acontecer. Um amor resiliente, que se mantém vivo no silencio do outro e na cegueira voluntaria do mundo. Ainda que nos digam que não existimos neste amor, quando conseguimos encontrá-lo, a gente agarra ele e nunca mais solta. É um fardo. Amar no luto. Amar silenciosamente. Amar sozinho, um amar invisível. Mas quem conhece qualquer amor que, em alguma medida, não seja assim?